18 de nov. de 2025


MACAO MORREU: NÃO

MAIS TEMPOS ETÍLICOS

 

Soube na tarde de ontem da morte do compositor Jards Macalé (Rio, 03.03.1943– Rio, 17.11.2025). Triste. Macao, o multiartista irreverente, sempre bem-humorado. Mais um dos grandes que se vai: grande músico, grande violonista, grande figura.Sua agilidade no violão sempre me lembrou Baden Powell. Fomos amigos à distância:às vezes nos falávamos no zap, às vezes nos trombávamos em eventuais idas minhas ao Rio. A última vez que nos vimos foi há dois anos, numa tarde do Leme, na velha Fiorentina. Mais uma vez combinamos de ele voltar a Cataguases para um show: “Verde! A revista Verde: quero voltar lá, Ronaldo”. Não rolou. E agora não rola mais.A seguir, em homenagem ao amigo Macao, republico uma crônica de meu livro “Há Controvérsias 2” sobre sua meteórica e etílica passagem por Cataguases numa noite de 1981. Eram tempos etílicos, com direito a uma piada engasgada de minha parte, ao frango com quiabo da mamãe, a todos os álcoois e a um inacreditável show vespertino de Macalé, aplaudidíssimo num Edgard Cine-Teatro totalmente lotado.

 

ERAM TEMPOS ETÍLICOS

Eram tempos etílicos e super-herói não tinha dono. Quer dizer, no Pasquim tinha, pois só o Ziraldo podia fazer cartuns com os pobres dos super-coitados. Piada também não: não tinha, não tem dono, autor, autoria. Mas essa tem, pelo menos essa envolvendo super-heróis, que vai ao final desta crônica piada-crônica, se é que conseguimos lá chegar. Era nos finalmentes de 1981, meados de dezembro, Uma noite de sexta-feira, quente a mais não poder, e eu acabara de chegar a Cataguases.

Eram tempos etílicos. Na copa, ora veja, papai cerveja bebia: pois-ora-pois – poeta concreto não rima, ou rimaria? Bebia papai e pela tevê ou/via o Flamengo jogar em Tóquio contra o super & power team do Liverpool: final da Copa dos Campeões, ou coisa que o valha. Na copa, da casa e dos campeões, fiquei a ver o Mengão com papai – umas cervejas a estibordo, que eram tempos etílicos. Nosso centroavante Nunes (quem?), sempre muito bem servido pela magia dos passes de mestre Zico, mandou três vezes a bola pras redes do Liverpool. E pool e pronto: É campeão!

Eram tempos etílicos e estivais. Pois é, no calor da vitória do Mengão, calorão de Cataguáis, calor demais. Duas da matina na Rua Dr. Sobral: mal acabara a pugna (gente, “impugna” essa, por favor!), três flamenguistas pelotas na rede inglesa (ou japonesa?), e eu meio mamado beijei papai, entrei no carro e me (des)mandei noite adentrafora. Eram tempos etílicos, muitas cervejas havia e de lei seca ninguém sabia.

 

O violão no Pelotas

Eram tempos etílicos e semoventes: ainda adernando aportei no Pelotas, a madrugada ao longe. Ah, o Pelotas! Era referência máxima, mesmo porque única, nas noitadas cataguasenses de então – antecessor do Bar do Quim (o “BoteQuim”, como eu o denominei um dia-noite), e depois do Bar da Loura, brava resistência da madrugada. Aliás, não era pra menos: o dono era o próprio Quin, e no Pelotas a noite corria sempre matreira, que nem as flamenguistas pelotas cravadas no Liverpool.

Eram tempos etílicos e uísque. Eis que (isto é, “uís-quê”), adentrando o chamado recinto, ouço um violão endiabrado, som que surgia das mãos de um cara de costas para a porta principal, muito à vontade dentro de uma camisa do Flamengo. Som e voz, uma voz e um som conhecidos, mas que eu não podia acreditar que ali estivessem, que aquele cara ali estava, violão e voz varando a varanda: “No cinto de utilidades as verdades/ Deus ajuda/ A quem cedo  madruga em Gotham City”.



Eram tempos etílicos, às vezes dentro, às vezes fora da melodia. Mesmo assim meus ouvidos estavam antenados. Não dava pra acreditar, mas quem arrasava nas Pelotas – e dentro de uma camisa do Mengão! – era mesmo Jards Macalé, o próprio Macao: “Cuidado! Há um morcego na porta principal/ Cuidado! Há um abismo na porta principal”. Entrei logo no embalo, soltando também meu desafinado canto “cata-noite”: “No céu de Gotham City há um sinal/ Sistema elétrico e nervoso contra o mal/ Tem um sambinha, tem axé, tem carnaval/ Todos estão dormindo em Gotham City/ Cuidado! Há um morcego na porta principal”.

Eram tempos etílicos. E de rogado não se fez Macalé: qualé? Três garrafas à frente já éramos amigos de infância e eu tentava contar uma piada que bolara dias antes (sim, piada às vezes tem dono): como cenário, claro, a própria Gotham City. Sacumé: uma coisa leva à outra, né seu zemané? Pelo menos, eu achava, pois esqueci a piada nem bem comecei a contar. Engraçado que a partir de então, e por várias vezes, ouvi minha piada contada por outrem, “outrens”, com uns tantos trens a mais, ou a menos. Nunca ousei dizer que havia criado a dita cuja. Piada é piada ter dono.

 

Hotel das Estrelas

 Era então em pleno calor de uma sexta-feira, 13 de dezembro de 1981, e estava eu com o agora meu amigo Macao/ Jards Macalé no Pelotas, famigerado botequim da noite de Cataguases. Eram tempos etílicos, e eu me esquecera do final de uma piada recém-criada. Exatamente aquela passada em Gotham City, que eu acabara de inventar. Meio que engasguei, dei um trago, uma talagada e mudei “rapimente” de assunto. Pedi logo pro Macao cantar Hotel das Estrelas, sua canção com letra de Duda Machado, minha predileta entre todas as suas: “Estrela vulgar a vagar/ Rio e também posso chorar”.

Manda de lá Macao: “Não preparei Hotel das Estrelas, fica difícil pra tirar assim, na hora”. Não sei se já falei, mas Macalé estava em Cataguases prum show para estudantes que iria fazer no Edgar Cine-Teatro no dia seguinte, às três da tarde. Nunca entendi o porquê desse estranho horário, mas eram tempos etílicos, vocês bem sabem. E Hotel das Estrelas não estava no programa. “Pena”, falei. “Mas, se você terminar a piada, eu tento”, rebateu Macao – irônico e de (bate)pronto.  Qual o quê! A piada não evoluía. Sabia que tinha o Batman, o Robin, o Coringa, também o Super-Homem. Mas, e daí?




Pelas ruas o que se via

O que acontecia, o que gotejava pelas góticas paredes de Gotham City? Só de birra, tomamos mais quatro ou cinco birras, alguns steinhaggers pra equilibrar e, como apoio estratégico, uma cachaça diabólica sacada das profundezas pelotais. Eram realmente etílicos os tempos.  Dali, embrenhados na madrugada, cabeças girando, rodamos por uma Cataguases que por nós também rodava (“dessa janela sozinho/ olhar a cidade me acalma”). E foram ainda muitas birras-cervejas e foram muitos tragos e talagadas outras, e foram muitos monumentos e Bolonha e Bruno Giorgi e Djanira e Marcier e Portinari e foi muito Colégio de Cataguases e Niemeyer e Burle Marx e Francisco Inácio Peixoto, e foi muito cinema e Humberto Mauro, e foi muito, muito Rosário Fusco & todos os rapazes da Verde – que o Macalé queria saber de tudo um muito.

De manhã, pra lá de insones, acabamos na Rua Dr. Sobral – começo e fim: carpe diem. E lá nos metemos devidamente altos e “fogueiros” num disputadíssimo jogo de sinuca nos fundos do Armazém do Sachetto. Isso antes de arribarmos à casa do papai, logo adiante, e enfrentarmos galhardamente o frango com quiabo da mamãe, com o estratégico apoio de brahmas tantas & batidas quetais. Abatido o imbatível frango da Dona Zeca – imbatíveis que éramos –, Macao & eu rumamos num só e rápido-lento plano-sequência para o Cine Edgar. E sem dar tempo ao tempo, pois – sacumé, All That Jazz – o show tinha que começar. “Uis-quê” surge inesperadamente no camarim um garrafão assim de cachacim.  O tempora! O mores!

Que tempos aqueles! Nem bem entrou no palco – o Edgard Cine-Teatro inacreditavelmente lotado naquela tarde de sábado –, Macao mandou de lá: “Estou adorando Cataguases. Desde ontem à noite o poeta Ronaldo Werneck vem me mostrando sua cidade, falando de seus artistas e me pedindo a cada minuto que cantasse pra ele minha canção Hotel das Estrelas. Acontece que ela não está no programa deste show. Mas disse ao poeta que cantaria se ele terminasse de contar a piada sobre Gotham City, que ele diz ter feito e está tentando se lembrar desde esta madrugada. Convido então ao palco o Ronaldo Werneck pra abrir com sua piada o nosso show.”. Não sei bem como adentrei aquele palco, pois Macao não disse que iria me chamar. A voz pastosa, num sem-graça daqueles, enfrento a plateia e dou partida à parte que não fazia parte do meu show. Nem do Macalé.

“Um dia, lá de Gotham City, Batman pede um help pro Superman: ‘Venha logo, estou sozinho aqui e o Coringa tá botando pra quebrar, já ganhou todas as ruas. O Robin? Ora, o Robin! Ele está lá na esquina, fazendo não sei o quê com os garotos. Você sabe, o Robin não tem mais jeito. Venha logo, Superman!’. Não teve dúvidas o Homem de Aço, que logo se mandou de sua Super Caverna, de sua Super Metrópolis. E super voando a toda, super veloz, senhor de todos os super poderes, chispou Superman pra Gotham City. Eis que (pausa). Eis que (pausa maior).

“Acho que esse “eis que” – continuei a falar, de frente para a plateia –, que me lembra “uís-quê”, é mesmo o melhor da minha piada. Não me lembro do resto. Vou pro camarim, volto pro meu “uís-quê”, e deixo vocês com Jards Macalé. E sem Hotel das Estrelas: “no fundo do peito esse fruto/ apodrecendo a cada dentada”. Mal/dito e bem/feito. “Me mandei-me” do palco (sob imprevisíveis aplausos) e deixei o show pro Macao, que isso era mesmo função dele.

 



Uisquê: no Amarelinho

 

Corta pra seis meses depois: Rio de Janeiro. Meio da tarde no Amarelinho da Cinelândia. Dou de cara com Macalé & alguns chopes. Ele já tinha contado toda essa “nossa história” na coluna que assinava na Folha de São Paulo. Faltava a piada. “Senta aqui, meu poeta: pega um chope e conta a piada: o que houve com nossos super-herois?”. Dois chopes e um “stein” depois, “uis-quê” saiu a piada.

Assim: “Superman só chegou a Gotham City tempos depois. Batman reclamou: ‘Mas o que houve? Agora já prendi o Coringa, Gotham City está calminha – o Robin, como sempre, na esquina com seus garotos. Enfim, o que houve?´. Num sem jeito sem fim, manda de lá o Superman: ‘Cê nem imagina. Vinha a toda pra Gotham City, meus super poderes super super. Vai que ao sobrevoar uma cobertura meu super olhar de raio X dá com a Mulher Maravilha tomando banho de sol em pelo (amor de Zeus!). Uis-quê, com meu super tesão a toda, não deu outra. Ou deu, porque dei um super rasante Mulher Maravilha adentro – e crau!’. Batman exclama atônito: ‘Nossa, coitada da Mulher Maravilha!’. Superman super-super rápido: ‘Não, meu chapa: coitado é do Homem Invisível!”. 

Eram tempos etílicos. Lembro disso agora porque Maria Alcina me ligou há poucos dias: andou fazendo show com Macalé e ele me mandou um abraço daqueles. Outro procê, Macao. E também porque acaba de estrear no Rio um filme sobre meu amigo, “Um Morcego na Porta Principal”. A julgar pelo trailler na internet, o filme “desafina o coro do contentes”, como naquela canção que ele fez com o Torquato. Bem Macalé. Como tam/bém Macalé é o Hotel das Estrelas, disponível no youtube, com a “levada” (do breque & da breca) tropicalista da Gal Costa:  “Mas tenho os olhos tranquilos/ De quem sabe seu preço/ Essa medalha de prata/ Foi presente de uma amiga/ Sobre um pátio abandonado/ Hey, hey, hey mãe isso faz muito tempo”. Sim, faz muito e muito não-etílicos tempos sem uis-quê & Macao & Gotham City. E agora nunca mais.

In Há Controvérsias 2, 2011

21 de mai. de 2025

 

Maria Lúcia Godoy:

pássaro em pleno voo


 


         

         Aos 100 anos, faleceu na última sexta-feira, 16 de maio, a soprano mineira  Maria Lúcia Godoy (Mesquita, MG, 02.09.1924 – Belo Horizonte,  16.05.2025). Incensada por grandes nomes (JK, Bidu Sayão, Ferreira Gullar,  Drummond, Fernando Sabino, Glauber Rocha), Maria Lúcia foi uma de nossas  maiores cantoras líricas. Nós nos conhecemos em meados da década de 1990, quando ela fez um concerto apresentado por mim no CCBB/Rio, onde desfilava modinhas imperiais recolhidas por Mário de Andrade e belas serestas mineiras, “paixão e alento das gentes das Gerais”, como me dizia. Acabamos amigos: Minas nos uniu. Em fevereiro de 2004, Maria Lúcia realizou um concerto aqui em Cataguases, no Centro Cultural Humberto Mauro. Fui de novo o apresentador e publiquei na ocasião um texto sobre minha amiga na revista Usina Cultural, que eu editava junto com Mônica Botelho.  Eu a chamava, brincando, de “La Godoy”, epíteto que cai bem na Diva que realmente era. Em sua homenagem, reproduzo a seguir meu texto. 

 



    “Sua voz, quando ela canta,/ Me lembra um pássaro/ Mas não um pássaro    cantando/ Lembra um pássaro voando”. “A mais bela, a mais comovente, a      mais importante voz deste país”. “A tua voz confundia-se com o aroma das        rosas. Era tão segura e forte que enfraqueceu meu coração, meu corpo e                minha alma, de tal modo que não tive forças para te procurar e agradecer-te           por tudo e de joelhos te dizer muito obrigado”.

     “Nada de prima-donna, nenhum traço de afetação ou vedetismo que a            ópera nos acostumou a atribuir aos cantores líricos. Maria Lúcia tem um                jeito familiar de the Girl Next Door, como dizem os americanos – não fosse a        voz que, mesmo apenas falando, sugere aquele denso e profundo mistério          da criação: uma voz em que a poesia se reflete”. “Dona, sua voz é a paz no          coração, sua voz é o silêncio do mundo”. “Lembrar as serras de Minas/                   Demolidas, como dói!/ Mas me consolo se escuto/ Maria Lúcia Godoy./ Foi-        se o ferro de Itabira?/ O ouro não se destrói:/ Está na voz da mineira/ Maria          Lúcia Godoy”.

    O primeiro poema é de Ferreira Gullar. A frase a seguir, de Juscelino Kubitschek. A outra, de Cartola. Depois, Fernando Sabino. Aqueloutra, de um gari da Prefeitura de Belo Horizonte. O último poema, claro, é de Carlos Drummond de Andrade. “Ouvir Minas é ouvir Maria Lúcia Godoy”. Esta é do ex-Secretário de Cultura Angelo Oswaldo.

    Referência obrigatória da cultura contemporânea brasileira, a soprano Maria Lúcia Godoy veio a Cataguases em novembro para cantar no encerramento das atividades da Escola de Música Lila Carneiro Gonçalves e lançar três CDs: Cantares de Minas, Modinhas Imperiais Brasil-Portugal e Maria Lúcia Godoy canta Manuel Bandeira.

Na chuva e sem barreiras
    

    “Eu vim aí pelas ruas de Cataguases, do hotel até aqui, literalmente cantando na chuva” – diz a diva ensopada, enxugando-se no saguão do Centro Cultural Humberto Mauro. “É sempre um prazer cantar para uma cidade especial como Cataguases, com sua literatura e entidades do quilate desta Fundação, que protege e está frequentemente patrocinando arte e artistas. Esse povo precisa e merece. E é sempre bom cantar num teatro maravilhoso como este. Ainda mais com o Choro e Canção Patápio Silva, esse grupo cataguasense de gente muito simples, maravilhosa, extremamente musical.

    “Cantar. É sempre um prazer cantar. Ultimamente tenho trabalhado muito com o Arte sem Barreiras, programa que trata da inclusão do artista deficiente na sociedade. É um movimento criado nos EUA e que em nosso país é desenvolvido pela Funarte e dirigido por Albertina Santos Brasil, uma mulher fantástica, de quase 80 anos e safenada, que viaja pra todo o lado, Brasil e exterior, levantando de forma comovente a bandeira do Programa. Antes de tudo, o artista deficiente é um artista, um ser humano como qualquer outro, que deve poder mostrar sua arte. E Albertina sabe disso como ninguém.

    Maria Lúcia lembra-se então de seu sobrinho Arnaldo Godoy, deficiente visual, que acabara de nos emocionar dias antes, quando foi exibido o filme "Janela da Alma", de João Jardim e Walter Carvalho. Numa das sequências, ele conta ter entrado no mar de Copacabana com a filha menor e que, de repente, ela desgarrou-se de suas mãos e ele ficou desesperado por ter perdido a menina em meio ao mar. Logo ela voltou às suas mãos e o susto passou.  Arnaldo e eu conversamos muito nos dias em que ele esteve em Cataguases. Um cego muito bem-humorado, pleno de piadas, mesmo quando,  agora,  já conseguia falar sorrindo sobre o episódio da praia.

    “Cantar sempre ilumina", diz Maria Lúcia. "Um dia meu sobrinho          Arnaldo         Godoy, que é cego, convidou-me para cantar num teatro que construíra para         os integrantes do Arte sem Barreiras em Belo Horizonte. Eu cantava ‘Ai, por          quem és, desce do céu,/ Oh! Lua Branca/ Essa amargura do meu peito, vem,          arranca/ Dá-me o luar da tua compaixão/ Oh! Vem por Deus iluminar meu coração’, pois é, eu cantava com os cegos do Instituto São Rafael o ‘Lua Branca’, de Chiquinha Gonzaga, quando aparece uma lua gigantesca, maravilhosa, uma coisa mágica. Desse momento iluminado eu não me esqueço mais.

 

Glauber e o soluço engasgado




          Se falo baixo é para preservar minha voz, que é técnica mais emoção. É uma coisa que brota de mim, natural, espontânea. Eu a preservo porque esta é minha força, meu projeto de arte, é como levo emoção ao meu público. Lembro de um poema meu: ‘Cumpra meu canto até onde possa imaginá-lo/ Que possa tensionar as palavras/ E ser o arco musical das intenções´.

    Gosto muito de poesia. Esse disco que gravei com poemas de Manuel Bandeira é usado em universidades americanas para estudo de poetas brasileiros. Em Tóquio, no Japão, e até no Afeganistão eu cantei “Azulão”. Na Alemanha, França, Itália, Espanha, na Europa toda, também em Bagdá, essas coisas belíssimas do Bandeira com o Jayme Ovalle (cantarola):  ‘vai azulão, vai companheiro´, grande sucesso em vários países.

    “Uma de minhas maiores emoções foi cantar no enterro de Glauber Rocha, a convite de sua mãe. Quem cantou as Bachianas no filme “Deus e o Diabo” foi a Bidu Sayão, Glauber não me conhecia ainda. Foi uma surpresa quando Dona Lúcia me procurou: ‘Ah Maria Lúcia, Glauber era apaixonado por você, gostava tanto de sua voz, tinha todos os seus discos, estão quase furados de tanto ouvir! Ele queria muito colocar você num filme sobre O Guarani’. Cantei ao vivo pro Glauber, ele morto, e foi uma coisa comovente.

    “Cantar é sempre muita emoção, é uma dádiva.  Mais que amor, é uma doação onde temos como resposta o aplauso do público. Isso nos desgasta muito, a gente coloca sempre muita intensidade e sempre se sujeita às intempéries da vida. É como escrevi no poema musicado pelo Waldemar Henrique (cantarola): ‘A voz é triste e a canção magoa/ Entretanto eu canto/ Entretanto eu canto/ E nesse exercício raro/ Vai-se enxugando o meu pranto/ Eu vou guardando entanto a voz/ Meu amor, meu desencanto/ Entretanto eu canto/ Na garganta preso/ Como um pássaro/ Um soluço engasgado”.

Ferreira Gullar tem razão: cantando, Maria Lúcia Godoy “lembra um pássaro voando”.

Cataguases, fevereiro de 2004

 

 


11 de mar. de 2025

AFFONSO ROMANO DE SANT´ANNA: PERDE ESTE PAÍS SEU POETA-CRONISTA

 

    Morto terça-feira passada aos 87 anos, o poeta, professor, cronista e crítico literário Affonso Romano de Sant´Anna (Belo Horizonte, 27.03.1937/ Rio, 04.03.2025) partiu sem ter sequer consciência de que sua esposa, a também escritora Marina Colasanti, partira pouco mais de um mês antes dele. Meu amigo estava “fora do mundo”: com Alzheimer desde 2017 e acamado há quatro anos.

    Este é o país que pude/ que me deram/ e ao qual me dei,/ e é possível que por ele, imerecido,/ – ainda me morrerei.”. Assim escrevia Affonso em seu grande poema “Que País é Este?”, lançado em 1980: “Este é um país de síndicos em geral,/ este é um país de cínicos em geral,/ este é um país de civis e generais.// (...) e nesse mundo à avessas/ – a cor da noite é obsclara/ e a claridez é vespertina.”.


Estive com meu amigo Affonso em várias ocasiões, inclusive no lançamento de “Que País é Este?” no segundo semestre de 1980 num imenso, solitário e recém-inaugurado Shopping Rio Sul.  Tão grande e solitário que lembro ter até “perdido” meu carro. Minha amiga Deborah Levinson e eu só fomos encontrá-lo depois de muita procura – sozinho, perdido entre as pilastras de outro andar. Fora o livro, na ocasião ganhei de Affonso um grande e grandioso poster do poema então inédito “O Haver”, do Vinicius, que falecera meses antes. No ano seguinte, o poster-poema ficaria para sempre colado na parede de meu apartamento de Copacabana: até hoje é um dos poemas de que mais gosto do Vinicius. “Resta esse diálogo cotidiano com a morte, esse fascínio/ Pelo momento a vir, quando emocionada/ Ela virá me abrir a porta como uma velha amante/ Sem saber que é a minha mais nova namorada.”.

Violão de Rua, SLD, namoro & Festival

 

A primeira vez que vi o nome Affonso Romano de Sant´Anna foi no nº 1 do “Cadernos do Povo Brasileiro/ Poemas para a Liberdade/ Violão de Rua”, editado pela Civilização Brasileira em 1962, que está ainda agora aqui, intacto, em minhas mãos. Ao lado de nomes como Ferreira Gullar, José Paulo Paes, Vinicius de Moraes, Affonso abre essa primeira edição do “Violão de Rua” com “Outubro”, um poema que chamou minha atenção por seu ritmo e assonância – e de que gosto ainda hoje: “”Outubro/ ou nada// Ou tudo/ ou sangue// Outubro/ ou tumba// Outubro/ ou pão// Outubro/ ou tunel// – de emoção”.

Mas nossa amizade começou alguns anos depois, a partir de 1968 (há quase 60 anos!), quando Affonso participava do Programa Internacional de Escritores da Universidade de Iowa, na California, e nos enviava colaborações para o SLD, o Suplemento Literário que eu editava em Cataguases, junto com poeta Joaquim Branco. Logo depois, em 1970, eu o convidaria para ser um dos jurados do Festival Audiovisual. Na época, Affonso era um dos redatores da editoria Internacional do Jornal do Brasil, na velha sede da Avenida Rio Branco, no Rio. Quando estive na redação para fazer o convite, Affonso não só aceitou como pediu para eu convidar também a Marina Colasanti, do Caderno B. Dito e feito.


Cataguases, 1970: uma foto histórica. O júri do Festival Audiovisual tinha tantos famosos que acabamos colocando o pessoal no palco: afinal eles é que iriam brilhar. Atrás de Luiz Carlos Maciel (ao lado de Clementina deJesus, presidente honorária, e do poeta Francisco Marcelo Cabral), uma pensativa Marina Colasanti. Com certeza ela estava pensando no namoro com o Affonso, que está ao seu lado, embora na foto só apareçam as pernas do poeta. Atrás de Marina, o casal de poetas-processo Neide e Álvaro Sá. Atrás da Neide, o poeta Affonso Ávila. Vê-se ainda, ao fundo, o cantor Lúcio Alves, uma das glórias da cidade.

    Eu nada sabia do início do namoro entre os dois. Reservei dois apartamentos para eles no Hotel Cataguases. Quando chegaram para o Festival foram direto para a casa dos meus pais à minha procura. Eu estava no banho e quando saí dou de cara com eles na sala, já à vontade, tomando um uisquinho com meu pai. Antes de entrarmos no carro, Affonso me pediu, “discretamente”, que lá no Hotel falasse para a Marina que, “infelizmente”, só haviam reservado um apartamento e se teria problema de os dois ficarem juntos. Dito e feito 2. 
    A jogada do Affonso deu certo e foi assim que o namoro vingou de vez e eles casariam logo depois e ficariam juntos pelo resto de suas vida. Já eu, sem saber direito da artimanha, fiquei na posição de cupido incauto do casal. Coisa que Marina reconheceria anos depois quando me confessou: “Foi aqui, no Hotel Cataguases, que nosso namoro realmente começou”.

 EXPOESIA I

“Não fique nesta de Olavo Bilac. Ouvir estrelas já era. Inclusive os dodecassílabos, aqueles velhos alexandrinos. A poesia, como qualquer coisa, precisa acompanhar o seu tempo, ser atual & atuante. A poesia não é pura. A poesia é para. É preciso se atualizar constantemente: você sabe o que é linossigno? E palavra-levantamento? E poesia-onça?  Pois é, antes de esperar que a lua lhe dê de bandeja a inspiração para cantar as veiazinhas azuis e o corpo alvíssimo de sua amada mais recente é bom se manter up to date: vá à PUC (ou “vá pra PUC”, como diz meu amigo Rosário Fusco) e veja, sinta, cheire a EXPOESIA I. Saiba porque, como diz João Cabral, a poesia é para. Falar nisso, você sabe quem é João Cabral?”.

Assim eu abria a matéria que publiquei no jornal que então editava, o “News-Lagoa”, sobre a EXPOESIA I – um balanço da vanguarda poética nacional nas três últimas gerações. Um evento de grande importância organizado em outubro de 1973 na PUC/Rio, a Pontifícia Universidade Católica, pelo então diretor do Departamento de Letras, o poeta Affonso Romano de Sant´Anna.

E meu texto continuava: “Sob os pilotis do prédio Kennedy e no saguão de entrada da Biblioteca Central, encontra-se uma selva selvaggia, muitas vezes oscura, de cartazes, pôsteres, cubos, manuscritos, caixas-surpresas, livros de vários formatos, poemas-acrílico, poemas-plásticos e poemas-objeto. Todas as tendências & processos da poética brasileira dos últimos anos: do meta-soneto ao poema-processo.

“Dessa junção dos vários movimentos & veredas por onde foi se formando a trajetória da poesia nacional pretende-se, inicialmente, uma retrospectiva deles (Concretismo, Neoconcretismo, Práxis, Tendência, Processo) e, mais objetivamente, promover um levantamento da poesia de hoje, suas formas e condições de subsistência. E é exatamente por isso que a mostra estará aberta a todas as tendências & movimentos, mesmo – ou principalmente – os casos isolados e marginais. Não haverá “sem censura estética”. Aliás, seria inconcebível.”.

Fala, Affonso

Alguns flashes da longa entrevista que fiz com Affonso sobre o evento EXPOESIA I:

”Mineiro da geração Tendência, o poeta Affonso Romano de Sant´Anna, diretor do Departamento de Letras e Artes da PUC e organizador da EXPOESIA I, acredita que este seja o momento de um retorno da poesia, como se vê nos tópicos a seguir.

– Após um período de efervescência na produção de diversos movimentos de poesia de vanguarda, de uns tempos para cá a poesia parece ter se silenciado, ou vivido às expensas da música popular. Uma observação mais atenta revela, contudo, que a poesia permanece sob os mais diferentes disfarces e que ela não apenas sobrevive como exige novos olhos para ser percebida.

– A EXPOESIA I não limita nem constrange a participação dos poetas. Não se trata de seccionar a priori um tipo específico de poesia, eliminando os demais. Trata-se de levantar o que existe hoje, para marcar as “semelhanças e diferenças” com os processos poéticos anteriores.

– Nesse sentido, além servir como retrospectiva e como possibilidade de levantamento da poesia hoje, a EXPOESIA I tem como finalidade aproximar a Universidade da literatura viva, incentivando o espírito criativo de alunos & professores. E a Universidade é o lugar natural para uma promoção deste gênero, pois ela é o maior público consumidor de literatura e a organizadora virtual da cultura de um país.

Foi um grande evento, uma jogada de mestre do grande mestre que Affonso sempre foi. Ao desenvolver várias “áreas de levantamento” (perdão, Mário Chamie), a EXPOESIA I mostrou-se sonora (falada, gravada, cantada), visual (cartaz, slide, super-8) e escrita (livros & quejandos), ou seja, com a devida licença dos irmãos Campos: verbivocovisual. Paralelamente, foram realizados debates, projeções de filmes, mesas-redondas & etc., com a presença dos integrantes de todos os grupos da vanguarda poética nacional. 

LIBERTARDE NO JB

Mas, dias antes da EXPOESIA I, meu amigo Affonso me reservara uma grata surpresa ao publicar meu poema visual Libertarde no Jornal da Poesia, que ele editava no então poderoso Jornal do Brasil. Foi assim que naquele sábado, 29 de setembro de 1973, levei um susto ao ver meu nome nada mais nada menos que na primeira página do JB, na chamada de capa para o Jornal da Poesia, que saía junto com o Caderno B. Um texto (do Affonso?) que dizia qualquer coisa como: “O Jornal da Poesia publica hoje um poema de Pablo Neruda, morto no último domingo, e um poema visual de Ronaldo Werneck”. Ora por quem sois! Ainda por cima meu nome saiu junto ao de Pablo Neruda! O poema de Neruda era Walking Around, assim mesmo, em inglês. E o meu Libertarde, em negrito, caixa alta e letras garrafais, se destacava visualmente na página do Jornal da Poesia. Nunca mais meu nome foi estampado na capa do JB. E nunca mais vai ser, já que JB não há mais. Gracias, Affonso!

Selvaggia na Veja

Em meio às suas pesquisas para a produção do filme O mundo é macio e perigoso, que está sendo realizado sobre os meus 80 anos de vida e literatura, o diretor Murillo Azevedo encontrou um texto publicado em 1976 por Affonso Romano de Sant´Anna na revista Veja, quando do lançamento de meu livro Selva Selvaggia. Foi uma surpresa, pois eu desconhecia a publicação do Affonso: na época, aquela edição da Veja passou completamente desapercebida por mim. Interessante que Affonso cita em seu texto, entre outros, o poema, O mundo é macio e perigoso  que acabaria sendo o título do filme em construção. Transcrevo a seguir trechos da resenha de Affonso.

 “Neste cinepoema, a poesia vive uma odisseia no espaço. Selva Selvaggia não é o título de mais um livro de poesias, mas sim o nome de um cine-poema. O poeta-roteirista e diretor extraiu o argumento desta edição de fatos vivenciados por ele mesmo no eixo Minas-Bahia-Rio, entre 1962-1975, e de “outros lidos, vistos, consumidos – pelo telstar, pela tv, pelo cinematógrafo”. Para Glauber Rocha, um filme não é arquitetura de efeitos, mas expressão visual de problemas. Talvez esteja nestas palavras de Glauber a explicação para a proposta poética de Ronaldo, que sem dúvida alguma suou e sofreu para compor seu poema – “na rua, na cama, no teclado da máquina, subitamente dentro de um cinema”.

“Ronaldo Werneck é um poeta amadurecido em barris de carvalho. A quem brinda? A Oswald de Andrade, Fellini, Mallarmé, Jorge de Lima, Mário Faustino, João Cabral, Maiakóvski, Camões, e.e. cummings e muitos outros. O que brinda o poeta? A palavra e o homem. Em Selva Selvaggia, o leitor-espectador encontrará dez seqncias, e a primeira abre a cena com o poeta refletindo sobre seu ofício: procurando estruturar os elementos necessários para a cine-viagem, através das palavras, imagens, espaços em branco.

“Vejamos o poema Três haicais à la carte: 1) os brancos impressos/ entre as letras são tetas/ leite submerso. 2) pedra sal e sonho/ apreender com o corpo/ sol cotidiano. 3) do amor não a/ prendeu a tonalidade/ ar e amar´elo”. Notam-se influências joycenas – pelas associações sonoras – e de cummings – pela desintegração das palavras. Entre os melhores exemplos de total libertação, os poemas Telstar, 2001 o espaço poético, Canção da espera, Réu´p, Full-time, Pranto-socorro e outros em que as palavras se agrupam coerentemente e se estruturam formando mosaicos visuais e fragmentos sonoros.

“O poeta encerra a seqncia cinco com o poema-processo Pop/lar um poema eletrodoméstico, social, em que aparece uma página de jornal anunciando uma liquidação de geladeiras, aparelhos de tv, liquidificadores, fogões, bicicletas, enceradeiras. Na mesma página, a notícia – O mundo é macio e perigoso – é o título do poema-texto, que tem como ilustrações fotografias de crianças rindo e correndo de felicidade. Neste poema-texto Ronaldo mostra em versos como vê a realidade social deste mundo macio e perigoso. – “Uma canção de espera/ uma canção de esperança/ ancião/ ânsia/ canção/ anunciação/ retribuição/ risos/ grunhidos/ febre/ vômito/ de esperança/ é o mundo/ que te anuncio.

 Selva Selvaggia  é um desabafo de seu autor, refletido em uma boa dose de sentimentalismo poético, misturado com muita poesia concreta e alguns poemas-processo”.

Affonso Romano de Santana

Revista Veja, São Paulo, maio de 1976

 

O poeta “guerrilheiro e exilado”

Em 1980, com meu poema Rhó já hiju Asunción (em guarani, qualquer coisa como “Assunção, eu te amo”), venci o Prêmio PUC/Itaú de Poesia. Prêmio recebido (melhor, “ganho”, pois era uma grana mais que razoável) das mãos do meu amigo Affonso Romano de Sant´Anna, presidente do júri, que se disse surpreso quando soube que eu tirara o primeiro lugar.

Isso porque ele “tinha quase certeza” de que o poema, com seus “ares revolucionários”, era de algum “guerrilheiro exilado na América Latina”.  Nem bem o Affonso acabou de me dizer isso, ele e eu caímos na risada. O poema era mesmo deste mineiro aqui, um poeta de Copacabana que passara em 1977 uma temporada em Asunción del Paraguay, com direito a Recuerdos de Ipacaraí & otras cositas más.

Fragmento final de meu imenso poema: “fumo lark/ bebo cutty sark// vista assim/ súbito/ é marítima/ a paisagem/ rio-chaco// como em brasília/ é marinha a passagem/ entre a solidão/  e o cerrado// fumo lark/ bebo cutty sark// na plaza de los héroes/ sob o luminoso/ onde se lê/ paz/ trabajo/ bienestar/ con stroessner// el niño/ me vende cigarrillos/ y scotch/ e oferece/ por mil guaranis/  el cabacito de la hermana// GRACIAS!// bebo lark/ fumo cutty sark.

FBN: Ler o Mundo

Em 06.12.1990, o Caderno B do Jornal do Brasil estampava: “Nova cultura entra no ar”, remetendo à importância da indicação de Lélia Coelho Frota para o Patrimônio Cultural, de Mário Brochmann para o IBAC e de Affonso Romano de Sant´Anna para a Biblioteca Nacional. No dia seguinte, era a vez do Correio Braziliense estampar: “A cultura renasce na paixão dos artistas. Affonso Romano de Sant´Anna assume a FBN-Fundação Biblioteca Nacional e lidera a onda de otimismo”.

Intelectual que sempre incentivou a leitura, Affonso presidiu a Fundação Biblioteca Nacional entre 1991 e 1996 e ali, entre outros grandes projetos, comandou a criação do Sistema Nacional de Bibliotecas e do Proler.  “Ler é ler o mundo”, escreveu em seu livro sob o mesmo título (“Ler o Mundo”, Global Editora, São Paulo, 2011).

“Ler é refazer o real pelo imaginário, potencializando a realidade – dizia Affonso. Ler é reunir os signos dispersos, decodificar as informações, seja numa página, seja na estrutura de um prédio, na conjuntura de uma instituição ou no discurso que cada momento histórico expõe na fala e nas ações dos indivíduos”.

E assinalava: “(...) Aquelas coisas que Machado e Borges diziam: ler é uma forma de escrever, escrever é também uma forma de ler. (...) Como se vê, a leitura pode ser, em qualquer idade, um acontecimento na vida das pessoas. Um acontecimento que reordena tudo, passado e futuro. Até a esperança da gente nesse desastrado país”. 

Poesia Sempre

Sempre um grande divulgador de poesia, o novo presidente da Biblioteca Nacional não fez por menos: lança em 1993 a revista Poesia Sempre. Com o objetivo de proporcionar espaço para a produção poética contemporânea, a criação de Affonso Romano de Sant´Anna resiste até hoje. Ainda em 1993, recebo ligação de Affonso, perguntando se eu não gostaria de escrever uma resenha para o número 2 de Poesia Sempre, falando de um livro lançado por uma bailarina gaúcha que vivera alguns anos na Alemanha.

 Nem bem disse OK e o livro já me chegava às mãos. Dei uma folheada e não gostei nadica. Falei com o Affonso que não gostara: se fosse escrever, iria ser sincero e, até, imagina!, procurar algumas possíveis saídas para os poemas da moça. Affonso respondeu de lá: “Escreva o que bem entender. Nem sempre a gente pode só elogiar”. Dito e feito. E lá fui eu, nem bem elogiando nem bem massacrando de vez, a navegar pelo Alegro-Melancólico que dava título ao livro e deixava ver sua, vamos dizer, essência.

Dito e feito e publicado em julho de 1993 no número 2 da Poesia Sempre: “Da ´fase alemã´ da autora – eu escrevia – nasceu esse livro de estreia, poesia inspirada de fundo romântico-existencial. (...) Poesia metafísica? Sim, bem ao gosto dos que acreditam poder ouvir o cântico das esferas. Poesia por onde circulam esparsas sibilações ao som de Bach, que evidenciam sua afinidade musical em compasso Alegro-Melancólico.

“(...) Mas não é no ritmo, e sim no jogo de ideias que se busca corporificar a poesia nesses poemas. Percebe-se que os punti luminosi pouco cintilam nos ritmos ou perquisições filosóficas. Explodem, sim, em imagens que, aqui e ali, ponteiam inusitadas associações feitas poesia, como no decassílabo (de pé quebrado) “Aprender tem esse ritmo de fruta”. Curioso ressaltar como a marcação rítmica dialoga em criadora isomorfia com a semântica deste verso, onde a tônica mais forte instala-se exatamente na palavra “ritmo’, núcleo de seu significado”.

E por aí ia eu, meio no “morde & assopra”: “Partir frases não produz poemas, muito menos poesia. Diferente é construir imagens, concretizar na palavra ideias e sensações que permitam o aparecimento da poesia. Nada a ver com exclamações ou reticências que desvelam o óbvio e suprimem o aparecimento da poesia. (...) Ver é voar. Punti luminosi crepitando na constelação do acaso. Há que retomar o fio do poema, tecer a teia-trilha de suas saídas. Rumo à poesia.”.

Pois bem, eu havia viajado e não fui ao lançamento da revista. Dias depois o Affonso me liga: “Você nem pode imaginar o que aconteceu, Ronaldo. Quando soube que sairia uma resenha de seu livro, a moça veio direto da Alemanha para o lançamento. Nem bem bateu os olhos na sua resenha ficou uma fera. Queria mesmo era bater em você”. Pois é, deu um bode dos diabos. Acontece. Soube depois que ela estava namorando um de nossos grandes poetas, com quem eu me correspondia. Achei que também ele não falaria mais comigo, mas nunca tocou no assunto. Nunca vi a moça, nunca mais soube dela, nem sei onde anda seu livro, se é que ainda está aqui em casa. Desaconteceu.

Em agosto de 1994, o numero 4 da Poesia Sempre publicaria dois de meus poemas: Farol (“Faz no fundo um furor funâmbulo/ noctâmbulo, só noite e mundo/ súbito – penumbra, preâmbulo// (...) // faz-se no sobressono uma fresta/ uma réstia, sobrepondo/ luz ao que resta, luz canhestra”) e  Galo/Calo (“... há sempre/ o levante/ a surpresa deste dia/ onde brindo/ antes/ mais uma vez/ à polissemia/ ou não/ é isso/ não/ é isso/ de repente me calo/ e deixo ao galo seu ofício”.

Passaram anos, muitos anos, como na velha canção. Já neste século, em 2012, o nº 36 da Poesia Sempre, em seu ano 18 – a Biblioteca Nacional não mais sob as ordens de Affonso Romano de Sant´Anna –, publicava uma edição especial sobre Minas Gerais e sua poesia editada pelo poeta Afonso Henriques Neto. E lá estava eu com meu Verão entre Ávilas, Drummonds, Henriquetas, Murilos, Mouras, Navas, Nunes, Romanos e mais alguns Verdes (Ascânio, Chico Peixoto, Fusco) e quantos mais viessem: ah havia tanto/ tanto joyce/ no original reler/ pound os gregos/ os provençais/ havia tanto/ tanto tempo perdido. 

Mítica Cataguases

Faculdade de Letras, Cataguases, 2000: Sentados na parte de trás: Wlademir Dias-Pino, Aquiles Branco, Fernando Cesário, P.J. Ribeiro (Pedro Branco) e Francisco Marcelo Cabral. Sentados na frente: D. Ione das Neves, Idalina Nunes, Joaquim Branco, Affonso Romano de Sant´Anna, Regina Pouchain e Ronaldo Werneck.

Em setembro de 2000 Affonso Romano esteve em Cataguases para um encontro na Faculdade de Letras com a presença ilustre dos poetas visuais Wlademir Dias-Pino e Regina Pouchain e de nomes representativos da literatura local. Como sempre, Affonso brilhou ao discorrer sobre o modernismo e a trajetória da poesia brasileira. Grande orador, professor por uma vida, mestre em literatura e coisas que tais, ele navegou à vontade por letras & artes, esbanjando aquele charme, aquela nonchalance de sempre. Ganhou de imediato o público presente e ainda toda a grande plateia que o acompanhava por um telão colocado de fora do auditório.

Finda a palestra, mas não a noite nem o papo, eu o convidei para jantar. Ele vira-se pra mim sorrindo e diz que sim, “mas num lugar que tenha música e dança, que vibre de alegria”. Eu voltara a residir há pouco tempo em Cataguases e não sabia ao certo onde acontecia o, vamos dizer, agito da noite cataguasense. Se é que havia. Mas lembrei-me de uma churrascaria que costumava ter música & dança. Lá chegando, meu amigo Affonso lançou pras moças e moçoilas que pediam seu autógrafo todo o seu charme de galã latino-americano, erzats perfeito do mexicano Ricardo Montalbán. Não, não dançamos. Poeta que se preze não dança. Apenas sente a música e admira os dançarinos enquanto viaja na batatinha criando poemas românticos, ou coisa que o valha.   Não sei se Affonso assim o fez, mas senti que a música, as moças, aquela alegria que ele me pedira era na verdade o melhor da noite cataguasense para o meu amigo. 

 “Comovo-me com coisas positivas”, escrevia Affonso em 13.09.2000 na sua coluna de O Globo. “(...) Em Brasília e Curitiba, ondo fui fazer conferências, acabam de realizar uma feira do livro. Em Cataguases, Minas, de onde acabo de regressar, tiveram de botar telão do lado de fora do auditório da Faculdade de Letras, confirmando que a cidade que viu florescer a revista Verde tem uma relação especial com a cultura. Mítica Cataguases. Dizem-me Ronaldo Werneck e Joaquim Branco que pelo Colégio de Cataguases passaram figuras como Chico Buarque, Carlos Imperial e Dori Caymmi.

“(...) Então, a gente fica pensando como o poeta “As coisas talvez melhorem, as coisas têm tal força”! E eu lhes digo, bardos do Araguaia e do Xingu, romancistas das coxilhas do agreste, não cortem ainda os pulsos. Alguma coisa pode acontecer. Há sempre um grupo de alucinados trabalhando pela leitura, pelo livro e pelo Brasil, a despeito mesmo do Brasil. E isto pode acabar dando certo. Nem que seja para os nossos netos”.

Com Affonso na Serra Gaúcha

Em email de 29.05.2011, eu perguntava ao Affonso se meu livro “Há Controvérsias 2”, que eu estava lançando,  havia “aportado” em Ipanema, na Nascimento Silva, onde ele residiu a vida inteira com Marina. Resposta imediata: “Claro que aportou. E lhe mandei umas palavras. Não é papo de mineiro nem de Alkmin. Falava da beleza editorial, de boa ideia de reunir todas as crônicas para se ter uma ideia do conjunto e de sua atuação ímpar no reino de Cataguases e adjacências. Como foram os lançamentos Brasil afora? Confesso que cada vez mais morro de medo de lançamentos. Outro dia até citei o Fusco numa crônica. Abraço, ars”.

Encontro também, meio que perdidas em minha caixa de e-mails, algumas mensagens do Affonso, como essa de 2013, quando foi lançada a edição especial sobre Cataguases que eu havia organizado para o Suplemento Literário do Minas Gerais:  “Ronaldo: belo suplemento sobre Cataguases! Parabéns! Foi uma revisita! dê um abraço no Joaquim”.  Logo depois, em 2015, sobre dois livros que eu enviara: “Acabo de receber "Cataminas" e "Doris" (Doris Day by Night, que tem um, vamos dizer, “porno-poema” dedicando a ele: “& meta-poema”). Você está virando o poeta mais sacana de nossa poesia, indo além do Bernardo Guimarães com esse "ELIXIR" de Copacabana. Coisa de doido, sô! como dizia o Hélio Pelegrino! No mais é província ideal fluindo dentro de nós... abraço, ars”. Eu respondi, na brincadeira, qualquer coisa como “modestamente”. E foi a última vez que nos comunicamos: logo depois, em 2017, meu amigo seria assomado pelo Alzheimer. 

Em outubro de 2011 nós nos encontráramos na Serra Gaúcha, no Congresso Brasileiro de Poesia de Bento Gonçalves.  Affonso seria o poeta homenageado daquele ano e eu o encarregado de fazer a apresentação de abertura, antes de sua palestra “A poesia vivida”. Escrevi umas duas, três, quinhentas palavras, pois o Affonso mais que merecia. Transcrevo algumas delas.

“Sou diretor de Comunicação do Cineport, o Festival de Cinema dos Países de Língua Portuguesa e há quinze dias estive por uma semana em João Pessoa, quando se realizou sua quinta versão.  Aluno aplicado, bom de dever de casa, em meio a intensas exibições de filmes, em meio ao dever de produzir textos para cineastas de vários portes e países, os livros do poeta-professor Affonso Romano de Sant´Anna me acompanhavam a cada pequena oportunidade que havia de neles novamente mergulhar. Isso porque deveria fazer a apresentação de sua palestra neste Congresso, o que estou aqui a fazer.

“Eu levara vários desses livros, a maioria já marcados (hábito antigo), e que ia aos poucos relendo e remarcando e remarcando, abancado naquele quarto de hotel na Paraíba. Tentei ainda em João Pessoa encontrar os dois livros que Affonso lança aqui em Bento nesta semana. Mas só achei o Ler o Mundo, e mesmo assim na véspera de minha partida. Do Sísifo, necas de pitibiriba: ainda não chegara à Paraíba. 

“Semana passada, de volta à minha Cataguases, de novo os livros de Affonso povoaram minhas leituras. Estavam os seus livros agora devidamente acompanhados de Os Sonhos não Envelhecem, do Márcio Borges e de Palavras Musicais, do meu amigo Paulo Vilara, onde existe longa e bem apanhada entrevista com o Márcio. Como disse, eu sou bom de dever de casa: vou mediar também a palestra que o Márcio fará aqui em Bento.


Bento Gonçalves, 2011. Letra de música e poesia em debate: Márcio Borges, do Clube da Esquina, Ronaldo Werneck e Affonso Romano de Sant´Anna.

“E essa semana passada em Cataguases foi assim prazerosamente dedicada ao Affonso e ao Márcio. Na quinta, ou sexta-feira, minha irmã Rosa ligou dizendo que a Marina Colasanti estava dando uma entrevista na Globo News. Parei com o Affonso, e na contramão pulei, com o devido perdão, pra Marina muito da desenvolta em pleno Parque Lage, onde morara em priscas eras.  No sábado à noite, antenadissima, Rosa chega lá em casa para jantar e vai logo falando que o Affonso iria lançar no Rio o seu Sísifo. Pena, pois só cheguei ao Rio ontem, de passagem para o Aeroporto, dali para Porto (Alegre), até que aqui em Bento aportasse”.

Em seguida, eu falava de como conheci o Affonso, de minha admiração por ele, dessas coisas todas que se encontram, de certa forma, já descritas neste meu texto que parece nunca se acabar. E, ufa!, finalizava:

“Antes de passar para o Affonso, quero passar pelo Affonso, se é que me explico bem. Por três de seus poemas, um dos tempos de Violão de Rua, lá dos confins dos anos 60, e de que nunca me esqueci, que fala de um outubro outro que não este, e com um ritmo e um bater de pés de um grande e contundente poema (e eu lia todo o imenso poema Outubro, já citado aqui, inclusive seu fecho).

Com vocês, Affonso Romano de Sant´Anna!”.

Cuidado, presidente,

                        – que outubro

                                               – é semente

Cuidado, ministro,

                        – que outubro

                                   – é sinistro

 

Cuidado, congresso,

            – que outubro

                                   – é da Esso

 

Cuidado, cardeal,

            – que outubro

                                                                                              – é fatal

 

Cuidado, operário,

            – que outubro

                                               – é salário

 

Cuidado, patrão,

            – que outubro

                                   – é lição

 

Cuidado, meu povo

            – que outubro

            (eleição)

                                               – é um ovo

                                                                                  que pomos      

                                                                                               – com a mão.

 

Finda a leitura desse poema, eu dizia “Só agora me dou conta de que hoje é exatamente dia 03 de outubro, dia em que nos bons tempos, pré-quartelada de abril de 1964, havia eleições neste país. Remember JK 65, a eleição que não houve: quantas e quantas & etc etc”.

E continuava:

“Passo então por um ´último poema antes do último´ (podem me chamar de penúltimo), a um poema do livro Textamentos, ganho do Affonso no ano 2000, com uma curiosa dedicatória: “Para Ronaldo, que há muito também textifica, o abraço do Affonso”. Não sei bem o que meu amigo quis dizer com esse textifica: coisa de poeta.

Desconfiando é seu título. E o poema corre assim:

Há muito

que não corro da polícia em praça pública.

Há muito

que não abrem correspondência minha.

Há muito

que não poupo palavras ao telefone.

Há muito

que não abrigo fugitivos.

Há muito

que não vejo filmes e leio livros que bem quero.

 

O que será que fiz?

Começo a desconfiar

que alguma coisa anda errada:

comigo

ou meu país. 

 

Agora sim, para finalizar (embora quisesse mais Affonso, e acho que vocês também), este poema de grande delicadeza e pungência e epifania:

Antes que escureça – 2

 

Levanto-me para olhar o mar

antes que escureça.

 

Sopra um vento de leste

e eu sei que as águas estão mais frias.

 

Considero as plantas do jardim.

Na estante os livros me contemplam.

Levanto os olhos pesquisando o nada.

E vejo uma gaivota no horizonte.

Ruídos da tarde me enternecem:

– uma buzina

– um grito de criança

– o cão latindo persistente.

 

O sol se põe à minha direita, exausto.

De tantas tardes esvaídas

esta grafou-se naturalmente no papel.

A tarde tem sortilégios.

Estou maduro para estrelas.

Escrevo. Venta o leste.

Escurece. E algo em mim

aos poucos se esclarece.

  

Ronaldo Werneck

Março de 2025